Uma família de discípulos de Jesus
Exposição de Marcos

23. Jesus versus Legião (conclusão) [Mc 5.1-20]

Jesus versus Legião (conclusão)

1 Entrementes, chegaram à outra margem do mar, à terra dos gerasenos. 2 Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de espírito imundo, 3 o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia prendê-lo; 4 porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo. 5 Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras. 6 Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, 7 exclamando com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes! 8 Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem! 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. 10 E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país. 11 Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de porcos. 12 E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. 13 Jesus o permitiu. Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram. 14 Os porqueiros fugiram e o anunciaram na cidade e pelos campos.
Então, saiu o povo para ver o que sucedera. 15 Indo ter com Jesus, viram o endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e temeram. […] 19 Jesus […] ordenou-lhe: Vai para tua casa, para os teus. […]. Marcos 5.1-15, 19a.

Pregado na IPB Rio Preto em 29/06/2014, às 19h30.

Introdução

Olhamos pela terceira vez para Marcos 5.1-20. Este é um relato importante para a nossa salvação. Marcos consolida a doutrina da redenção. É importante conhecermos esta doutrina, para nos apegarmos, mais e mais, ao puro evangelho da graça. É uma palavra valiosa também para nossa consolação, ajudando-nos a avaliar adequadamente as lutas nas quais estamos envolvidos semanalmente. Somos alvos de ataques, passamos por dificuldades e enfrentamos obstáculos. Mesmo os que se dizem cristãos contemplam esta realidade do mal e dar trevas e se perguntam como lidar com isso. Esta palavra é útil ainda para nossa santificação, porque, mesmo cristãos, temos de lidar com posturas e comportamentos que exigem arrependimento.

Resumindo, Marcos tinha convicção de que seus leitores seriam beneficiados com este relato. Daí o valor de olharmos novamente para a passagem, aprendendo com estas verdades trazidas a nós neste Evangelho.

Eu chamo sua atenção para três fatos apresentados neste texto e que, de certo modo, seguem o que foi apresentado na semana passada. Naquela ocasião, destacamos o poder destrutivo de Legião, o modo como o homem mencionado no inicio do capítulo é subjugado pelas forças do Mal. Hoje destacamos o poder de nosso Redentor, Jesus Cristo.

Marcos nos traz revelações preciosas sobre a pessoa e obra de Jesus. Ele inicia nos mostrando que…

I Jesus supera todo poder manipulador das trevas

1 Entrementes, chegaram à outra margem do mar, à terra dos gerasenos. 2 Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de espírito imundo, 3 o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia prendê-lo; 4 porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo. 5 Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras. 6 Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, 7 exclamando com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes! 8 Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem! 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. 10 E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país. 11 Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de porcos. 12 E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles.

Notemos no texto uma interação entre Jesus e Legião. No v. 2 lemos que “ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de espírito imundo”. Nos v. 6-7 somos informados: “Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, exclamando com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!” Os v. 10 e 12 contêm duas súplicas: “E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país” (v. 10) e “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles” (v. 12). Esta é uma das dificuldades de Marcos 5. Quão enigmática é esta interação entre Jesus e Legião!

Os detalhes desta interação estão disponíveis apenas para mostrar uma doutrina: Jesus supera todo poder manipulador das trevas. Eu não estou dizendo que as trevas não têm poder. Nós vimos o grande estrago que Legião faz ao homem mencionado nesta passagem. Marcos costura cuidadosamente seu relato a fim de destacar a Supremacia de Cristo. Diante do geraseno — e dos homens em geral — Legião é forte. Ninguém consegue subjugar o endemoninhado e a rotina daquela localidade é perturbada pelo poder das trevas (v. 3-5). Diante de Jesus, porém, o poder de Legião é limitado.

Vejamos a forma como Legião interage com o Senhor da glória. Primeiro, ele busca intimidar Jesus: “[…] logo veio dos sepulcros, ao seu encontro” (v. 2). Literalmente, o geraseno aproxima-se como um raio, a fim de apavorar. Provavelmente é assim que ele assombra as pessoas que passam por aquelas imediações, como lemos em Mateus 8.28. Pensemos na cena. O endemoninhado percebe a chegada de um barco. “Vou meter medo naquele pessoal” — pensa ele. Daí ele parte para o ataque furioso.

Em seguida, surpreendentemente, o homem outrora furioso se prostra aos pés de Jesus: “Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou (v. 6)”. O vocábulo proskyneō; traduzido como “o adorou” indica que ele “humilhou-se” diante de Jesus. Em outras partes do NT esta palavra indica adoração sincera dos crentes. Aqui, porém, o caso é outro. O geraseno corre na direção de Jesus e dos apóstolos para aterrorizá-los ou mesmo atacá-los. Então ele “vê” ou reconhece Jesus e é forçado a lançar-se no chão e curvar-se. Dito de outro modo, o que acontece nesta noite na região de Gerasa antecipa o evento anunciado por Paulo na carta aos Filipenses:

9 Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, 10 para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, 11 e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai (Fp 2.9-11).

Que esta prostração é involuntária demonstra-se pela postura e palavras petulantes deste espírito imundo. Lemos que ele “grita” (NTLH) com o Senhor (NTLH). A ARA traz “exclamando com alta voz” (v. 7) — a ARC propõe “grande voz”. Aqui somos ajudados pela Bíblia A Mensagem: O demônio “ruge” em protesto.

Daí ele diz algo semelhante ao espírito imundo apresentado em Marcos 1.24: “Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?” (v. 7). Satanás e seus demônios não têm nada a ver com Jesus; Satanás e seus demônios odeiam Jesus; Satanás e seus demônios são contrários a Jesus e aos seguidores de Jesus, como lemos em Apocalipse 12.17.

E a petulância chega ao limite quando Legião tenta (em vão, como veremos) forçar Jesus, em nome de Deus, a tomar um juramento: “Conjuro-te [horkizō][1] por Deus que não me atormentes!” (v. 7). Notemos o cinismo das Trevas. Legião “pede que não seja atormentado quando, na verdade, é ele quem está atormentando o homem!”.[2]

Por fim, notemos como o texto enfatiza o absoluto fracasso da argumentação de Legião. Reconhecendo sua ruína, agora revelados e falando no plural, os espíritos imundos suplicam a Jesus “que os não mandasse para fora do país” e, em seguida, que lhes permitisse entrar nos porcos (v. 10, 12). Nós voltaremos a este ponto daqui a pouco. Por ora, o importante é destacar isto: Legião usa todos os argumentos e estratégias de engano possíveis, mas falha em todas as suas iniciativas.

Por que Marcos inclui isso aqui? Lembremo-nos de que ele inicia seu livro dizendo “princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1.1), utilizando uma terminologia que remete ao Gênesis (Gn 1.1). Marcos sublinha que Jesus completa uma obra de redenção que é apontada no início da Bíblia. O ponto a destacar é este. O Mal não consegue assustar, desorientar, nem desconsertar Jesus. Pelo contrário, o Mal é absolutamente subjugado e desarticulado por Jesus.

Esta é a primeira verdade do texto: Jesus supera todo poder manipulador das trevas. Uma segunda possível afirmação é que Marcos 5 nos mostra que…

II Jesus supera todo o exército das trevas

8 Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem! 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. 10 E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país. 11 Ora, pastava ali pelo monte uma grande manada de porcos. 12 E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. 13 Jesus o permitiu. […].

O Evangelho prossegue ensinando que Jesus supera todo o exército das trevas. Isso é enfatizado pelo modo como ele liberta este endemoninhado. Outra dificuldade do texto: Jesus não apenas ordena ao espírito imundo que saia (v. 8), mas também pergunta o nome do demônio (v. 9). Por que Jesus age deste modo?

Alguns dizem que ele faz assim porque abraça a crença dos exorcistas de seu tempo — a ideia mágica de que é preciso saber o nome de um espírito para obter controle sobre ele.[3] “Jesus estaria ajustando-se às crenças e cultura de seu tempo”, dizem alguns. Esta interpretação é errada, porque Jesus não precisa de tal expediente para expulsar demônios. Em outras partes deste e de outros evangelhos, Jesus expulsa demônios sem perguntar saber seus nomes.

Outros sugerem que Jesus quer que aquele homem “reflita sobre a sua própria identidade”.[4] Próximo deste ponto de vista, para outro estudioso:

Jesus deseja revelar ao endemoninhado a seriedade de sua terrível condição. Para libertá-lo dela, Jesus deseja acalmá-lo e fortalecer a sua consciência do seu “eu” real. Ele deseja libertá-lo de sua ligação próxima — quase uma identificação — com o demônio, ou demônios, que, por tanto tempo, o tinham dominado.[5]

É uma interpretação interessante, mas temos de admitir que o texto não diz isso.

Propõe-se ainda que Jesus faz a pergunta como um médico que orienta uma equipe de residentes. Ele apresenta aos seus alunos doentes acometidos por enfermidades graves, ajudando os estudantes a propor diagnósticos e soluções. Jesus estaria ajudando seus discípulos a compreender que uma pessoa pode ser subjugada por mais de um espírito mau (ele também ensina isso em Mateus 12.43-45).[6]

Eu creio que a leitura mais adequada ao contexto é esta: O Evangelho de Marcos enfatiza simplesmente que Jesus supera todo o exército das trevas. Só isso. Este poder infernal é identificado como “Legião” não apenas para indicar que são muitos os demônios (é ingênuo entender que, assim como uma Legião de soldados romanos tinha 6 mil soldados, aquele homem é tomado pelo número exato de 6 mil demônios).[7] O melhor é entender que “Legião” aponta para “o conceito de superioridade numérica e de opressão física”.[8] O latinismo “Legião” aponta para um poder militar de invasão e conquista — um exército feroz, poderoso e praticamente invencível. Semelhantemente às legiões romanas, que subjugavam aquela localidade e país, “os poderes que escravizam se agruparam para manter seu domínio de morte”[9] sobre aquele homem. Resumindo, Jesus “quer que os discípulos percebam a extraordinária força que se levanta contra ele”.[10] Levanta-se um exército de Trevas e Jesus o enfrenta.

O que nosso Senhor faz aqui? Ele continua respondendo à acusação que lhe é feita em 3.22: “Os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele está possesso de Belzebu. E: É pelo maioral dos demônios que expele os demônios”. A partir desta acusação, o Redentor ensina sobre o reino (4.1-34) e, em seguida, retoma a implantação do reino acalmando a tempestade (4.35-41) e agora, libertando este homem geraseno (5.1-20). Os opositores diziam que Jesus era servo de Belzebu. O Evangelho prossegue demonstrando como se comporta um servo de Belzebu, bem como as repugnantes características do império de Belzebu, bem como esta “Legião” arregimentada por Belzebu. Então, o Evangelho revela a Supremacia de Jesus sobre a Tempestade e, em seguida, sobre Legião. Percebamos como o reino de estende. O “reino de Deus” (Mc 1.15) se estende pelo Comando Poderoso do Rei, Jesus Cristo, o Homem Forte que “amarra o Valente” (3.27).[11]

Isso é confirmado por outro detalhe do texto. Enigmaticamente, parece que Jesus atende às súplicas de Legião, mencionadas nos v. 10 e 17. Uma leitura mais acurada prova Jesus recebe duas súplicas e não atende à primeira (do v. 10), mas somente à segunda (do v. 17).

O que consta na primeira súplica? “E rogou-lhe encarecidamente que os não mandasse para fora do país” (v. 10). O que significa isso? Esta passagem não ensina que existem “espíritos territoriais”, um ou mais demônios incumbidos de oprimir o Brasil ou a França ou Moçambique, ou regiões menores, e.g., o poder demoníaco responsável pelo Estado de São Paulo ou a Potestade Satânica de Pernambuco etc.[12] É mais sadio confrontar Marcos 5.10 com a passagem paralela em Lucas 8.31: “Rogavam-lhe que não os mandasse sair para o abismo” (Lc 8.31). O abyssos, “abismo” é mencionado também em Apocalipse 20.3 como dimensão de contenção de Satanás. Eis o que lemos em Apocalipse 20.1-3:

1 Então, vi descer do céu um anjo; tinha na mão a chave do abismo e uma grande corrente. 2 Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos; 3 lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse as nações até se completarem os mil anos. Depois disto, é necessário que ele seja solto pouco tempo.

O que significa isso? A vinda do Redentor ao mundo restringe a ação de Satanás. Por causa da encarnação, crucificação e ressurreição de Jesus, o “o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás” é “preso” com “uma grande corrente” e colocado no “abismo”. A partir de então, “as nações” estão livres de seu engano, ou seja, podem ouvir e acolher o evangelho. É isso que ensina Apocalipse 20.1-3.

Você prestou atenção no ensino? Cristo vem e opera nossa redenção. Isso equivale a colocar Satanás e seus demônios no “abismo”. Lucas revela que aqueles espíritos imundos queriam continuar agindo na esfera dos homens; eles não queriam ir “para o abismo”. Juntando o pedido dos demônios em Marcos 5.10 com o de Lucas 8.31, temos a seguinte situação: Os demônios suplicam a Jesus que não os envie para o abismo — eles desejam permanecer naquela região ou país. Em suma, eles querem continuar por ali “infernizando” as vidas humanas. Jesus não responde nada e este silêncio de Jesus demonstra sua negativa. Não há opção. A ordem de Jesus já foi proferida — “Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem!” (v. 8) — os espíritos imundos terão de sair.

O que consta na segunda súplica? Entendendo que não há opção; que eles terão de sair mesmo, os demônios pedem a Jesus: “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles” (v. 12). Lemos no v. 13: “Jesus o permitiu”. Por que Jesus permite que os demônios entrem nos porcos e causem toda aquela morte e aparente “prejuízo” (no próximo sermão analisaremos se aquilo foi, de fato, prejuízo ou ganho)?

Isso nos conduz ao nosso terceiro e último ponto.

III Jesus é o poderoso libertador do povo de Deus

12 E os espíritos imundos rogaram a Jesus, dizendo: Manda-nos para os porcos, para que entremos neles. 13 Jesus o permitiu. Então, saindo os espíritos imundos, entraram nos porcos; e a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se despenhadeiro abaixo, para dentro do mar, onde se afogaram.

Afirmamos, em terceiro e último lugar, que esta passagem do Evangelho de Marcos demonstra que Jesus é o poderoso libertador do povo de Deus. Esta passagem é muito interessante. Por que Marcos insiste em registrar isso? E, além dele, também Mateus e Lucas? A ideia básica destes três Evangelhos é que Jesus se encaixa em toda expectativa messiânica! Havia uma esperança de manifestação do poderoso Redentor do povo de Deus, mas esta esperança era, às vezes, rebaixada. Esperava-se que o Cristo vencesse os exércitos estrangeiros e trouxesse libertação imediata. O Messias seria um revolucionário político.

Marcos informa que Jesus vai além das expectativas meramente terrenas e cumpre Gênesis 3.15: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. O Redentor feriria mortalmente a serpente, assegurando a redenção de todo o povo de Deus. Em uma primeira interação da serpente com o gênero humano, o resultado foi terrível. O homem desobedeceu a Deus e abriu espaço para a instalação do “reino parasita” de Satanás (Gn 3.1-24).[13] A humanidade foi vendida à “escravidão do pecado” (Rm 7.14). Agora chega esta outra personagem, este último Adão” (1Co 15.45) que enfrenta estes poderes todos das trevas. Jesus Cristo não se deixa enganar; pelo contrário, firmemente, ele estabelece seu reinado sobre todo poder de Legião, ou seja, ele cumpre a expectativa estabelecida por Gênesis 3.15. Isso é assegurado pelo que lemos no v. 13 (outra dificuldade do texto). Por que Jesus Cristo permite aquilo?

A resposta a essa questão exige que olhemos mais de perto para o v. 13. Aqui cabem três informações. Primeira, a frase epetrepsen, “o permitiu” (v. 13), “tem conotação de ordem militar”[14] (o verbo epitrepō pode denotar a autorização de um superior ao seus subalternos).

Segunda informação: O termo agelē, traduzido por “manada” (ARA, ARC, NVI) não é o substantivo coletivo correto para porcos (não é gramaticalmente correto dizer “manada de porcos”; o certo é dizer “vara de porcos”). O vocábulo agelē “muitas vezes era empregado para se referir a um bando de recrutas militares”.[15] Por que o Espírito Santo inspira Marcos a usar especificamente estas palavras para descrever o que acontece neste embate entre Jesus e Legião?

Terceira informação: Desde 4.35, Marcos menciona “águas”. Lá atrás (4.35-41), as forças do mal tentam eliminar Jesus e o colégio apostólico no tormento das águas. Agora (5.13), pela Palavra soberana de Jesus, as forças do mal são tragadas pelas águas. Isso remete inevitavelmente à poderosa libertação operada por Deus na época do Êxodo: “O Senhor derribou os egípcios no meio do mar” (Êx 14.27b; cf. todo o relato em Êx 14.26-31). No primeiro Êxodo, Moisés, o agente Pactual de Deus, garantiu a libertação do povo eleito e fulminou os inimigos do povo de Deus no mar. Agora, no Evangelho, Jesus, o agente pactual da Redenção faz submergir a Legião de inimigos de Deus no Mar da Galileia.

No Primeiro Êxodo foi entoado o cântico de Moisés (Êx 15.3-6):

3 O Senhor é homem de guerra; Senhor é o seu nome. 4 Lançou no mar os carros de Faraó e o seu exército; e os seus capitães afogaram-se no mar Vermelho. 5 Os vagalhões os cobriram; desceram às profundezas como pedra. 6 A tua destra, ó Senhor, é gloriosa em poder; a tua destra, ó Senhor, despedaça o inimigo.

Agora, no Evangelho, os crentes podem entoar novo cântico, como lemos em Apocalipse 15.2-4:

2 Vi como que um mar de vidro, mesclado de fogo, e os vencedores da besta, da sua imagem e do número do seu nome, que se achavam em pé no mar de vidro, tendo harpas de Deus; 3 e entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! 4 Quem não temerá e não glorificará o teu nome, ó Senhor? Pois só tu és santo; por isso, todas as nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus atos de justiça se fizeram manifestos.

É interessante isso. Os crentes entoando o “cântico de Moisés e do Cordeiro”, de “pé” sobre o “mar de vidro”.[16] Jesus vence todo poder do mal remetendo o exército inimigo para ser tragado pelas águas.

O que ensina Marcos? Deus está cumprindo as antigas profecias. Os inimigos de Deus são derrotados no Mar. “O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Esta é a tônica do Evangelho de Marcos. Como assevera o Dr. Ryle:

Cristo já triunfou sobre Satanás, na cruz. Ele vive em triunfo sobre Satanás, nos corações de todos os crentes, e intercede por eles, a fim de que não lhes desfaleça a fé. E finalmente, Jesus triunfará sobre Satanás, de forma total e completa, ao retornar em sua segunda vinda […].[17]

O Rei que estabelece o Reino é Supremo e Soberano. A passagem toda contém quatro súplicas absolutamente idênticas (parekalei auton). Dos demônios, v. 10, 12. Do povo, v. 17. Do recém-liberto, v. 18. A ideia, em todos os casos, é de “implorar”. Os demônios imploram; o povo implora; o geraseno recém-liberto implora. E Jesus responde como quer, nos termos do propósito divino para a efetivação (1) da glória de Deus, (2) da expansão do reino e (3) da edificação dos crentes.

O reino traz libertação plena. Cristo liberta. Absolutamente. Eficazmente. Instantaneamente. Este exorcismo é importante para entendermos a inauguração do reino no ministério de Jesus. Trata-se de um milagre-sinal com implicações eternas. Ele aponta para a redenção de todo o universo no último dia — a extirpação do mal do cosmos. Ele indica algo que começa hoje. As pessoas daquela localidade puderam ver, no dia seguinte, um geraseno ou gadarenos transformado pela pessoa e palavra de Jesus (v. 15). A aplicação da redenção começa na conversão e prossegue diariamente, na santificação. Na glorificação, desfrutaremos plenamente desta vitória de Jesus.

Isso nos leva a concluir.

Concluindo…

Em duas semanas, se Deus permitir, olharemos uma última vez para Marcos 5.1-20. Por hoje, entendamos o seguinte: Fica claro, tanto aqui quanto em 1.24, que Satanás e seus demônios estão cientes de que Jesus é o agente pactual de Deus que “esmaga a cabeça”, ou seja, Jesus julga, atormenta e fulmina a serpente, os agentes da serpente e os efeitos cósmicos da obra da serpente. Um dia, o universo será absolutamente limpo de todo mal e vestígio da obra da serpente, por causa da pessoa e obra de Jesus. Satanás e seus demônios sabem disso e “tremem”, como lemos em Tiago 2.19.

As Trevas, quando confrontadas por Jesus, são expostas e vencidas. Isso precisa ser relembrado porque nossa cultura tenta nos convencer do contrário. Observemos a quantidade de filmes que mostram as forças das Trevas combatendo as forças do Bem, e no fim, as Trevas vencem! Parece que a causa do Bem é mais fraca do que a causa do Mal. Isso é falso! A grande verdade do evangelho é que as trevas, quando confrontadas por Jesus, são expostas e vencidas.

Distantes de Jesus, as Trevas têm liberdade e parecem invencíveis. Diante de Cristo as Trevas se dobram, agonizam e, por fim, dissipam-se. As trevas são assustadoras e escravizam, mas Jesus é Deus Redentor que traz paz e libertação completa. Daí a palavra do apóstolo:

Mas todas as coisas, quando reprovadas pela luz, se tornam manifestas; porque tudo que se manifesta é luz. Pelo que diz: Desperta, ó tu que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo te iluminará (Ef 5.13-14).

Este é o convite do evangelho: “E não sejais cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; antes, porém, reprovai-as” (Ef 5.11). Em Cristo as trevas são dissipadas e nós caminhamos na luz. Jesus vence os exércitos das trevas (Legião) e traz libertação espiritual. Isso nos coloca diante dos questionamentos de um servo de Deus:

E agora, nós mesmos já fomos libertos do poder de Satanás? Esta é, afinal, a grande pergunta concernente às nossas almas.[18] Satanás continua reinando e governando nos corações de todos aqueles que são filhos da desobediência (Ef 2.2). Ele continua sendo rei sobre os ímpios. Temos nós, mediante a graça divina, quebrado as cadeias e escapado de suas mãos? Temos, realmente, renunciado ao diabo e a todas as suas obras? Resistimos diariamente a ele, forçando-o a fugir? Nos revestimos de toda a armadura de Deus e nos postamos contra as astúcias do diabo?[19] Que jamais descansemos, enquanto não pudermos dar respostas satisfatórias a tais perguntas.[20]

Vamos orar.

Notas

[1] Esta palavra pode ser interpretada também como “súplica humilde”; mas essa ideia, definitivamente, não se encaixa aqui.
[2] BALANCINI, Euclides Martins. Como Ler o Evangelho de Marcos: Quem é Jesus? São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 72. (Série Como Ler a Bíblia).
[3] Estes comentaristas mencionam a ideia sem subscrevê-la: MULHOLLAND, Dewey M. Marcos: Introdução e Comentário. Reimp. 2008. São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 93. (Série Cultura Bíblica); BORTOLINI, José. O Evangelho de Marcos Para Uma Catequese Com Adultos. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2006, p. 104. (Coleção Bíblia e Cotidiano); SWIFT, C. E. Graham. Marcos. In: DAVIDSON, F. (Ed.). O Novo Comentário da Bíblia. Reimp. 1985. São Paulo: Vida Nova, 1963, p. 997. v. 2.
[4] Parece ser esta a posição de Mulholand (op. cit. loc. cit.) e Swift: “O motivo mais provável da pergunta é que chama o homem à realização da sua personalidade” (WIFT, op. cit., loc. cit.).
[5] HENDRIKSEN, William. Marcos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 249. (Comentário do Novo Testamento).
[6] Esta é a opção “c” de interpretação deste texto, rejeitada por Hendriksen: “Outros […] afirmam que Jesus perguntou o nome do demônio para que seus discípulos pudessem saber — supostamente por meio da resposta a essa pergunta — que ele estava confrontando não somente um demônio, mas uma legião deles”; cf. HENDRIKSEN, op. cit., loc. cit.
[7] Ibid., loc. cit.
[8] SWIFT, op. cit., loc. cit.
[9] BALANCINI, op. cit., loc. cit.
[10] MULHOLLAND, op. cit., loc. cit.
[11] BORTOLINI, op. cit., loc. cit.
[12] O texto de Mulholand dá a entender que talvez ele creia nesta ideia. Ele escreve que “o conceito do domínio territorial dos espíritos (cf. Dn 10.12-14,20; At 19.35) se reflete nas expressões ‘lugares altos’ (Nm 33.52 [‘ídolos’], etc.) e os deuses da ‘planície’ (1Rs 20.23). Povos animistas creem que certos espíritos são senhores sobre um território ou uma casa em que habitam”. Cf. MULHOLLAND, op. cit., loc. cit.
[13] VAN GRONINGEN. Criação e Consumação. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p, 127. v. 1. O vocábulo “reino” é usado por ele referindo-se a um “poder comandante; a manifestação deste poder, o lugar onde este poder é manifestado; e ao domínio que é influenciado” (VAN GRONINGEN, op. cit., p. 127-128). A expressão “parasita” denota que o reino da serpente é “completamente dependente do reino cósmico de Yahweh. Satanás, como um ser criado, não é autônomo; ele tira todos os aspectos essenciais da sua existência e atividades de sua fonte, o Criador” (ibid., p. 128-129).
[14] MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, p. 238. (Grande Comentário Bíblico).
[15] MYERS, op. cit., loc. cit. Grifo nosso.
[16] Prestemos atenção nesta última partícula do cântico de Moisés e do Cordeiro (Ap 15.4); “atos de justiça”. Isso quer dizer que a morte dos porcos no mar deve ser entendida como sinal antecipatório. O ato enigmático de Jesus revela que, desde a inauguração do reino, na vinda de Jesus, o juízo de Deus recai sobre todo poder do mal. Trata-se de um ato simbólico de juízo, cumprindo a profecia de Isaías 65.1-7.
[17] RYLE, J. C. Meditações no Evangelho de Marcos. Reimp. 2011. São José dos Campos: Editora Fiel, 1994, p. 58.
[18] No 3º século, fazia parte da liturgia do batismo uma renúncia do poder de Satanás.
[19] Talvez muitos leitores de Marcos, mesmo sendo membros nominais da igreja, continuassem ligados às trevas.
[20] RYLE, op. cit., loc. cit. Grifo nosso.

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