“Não peço que os tire do mundo, e sim que os guarde do mal”, roga Jesus ao Pai pouco antes de ser entregue às autoridades para ir à cruz, conforme nos narra João 17.15. Ele sabia que o que estava pedindo era indissociável de seu ato de amor, ao oferecer-se voluntariamente para matar os pacados da humanidade com sua própria morte. Sem ele, jamais poderíamos alcançar esse estar no mundo sem ser do mundo – como ele mesmo descreve sua trajetória até ali.
Não podemos aceitar o mundo sem reservas, por causa do mal que encontramos nele; também não podemos recusá-lo por completo, pois isso seria recusar a própria existência. No entanto, sem Jesus o homem se vê obrigado a uma das alternativas: conformar-se ao mundo, perdendo a capacidade de discernir e ser diferente; ou desistir de tudo e sair do mundo, seja pela via direta do suicídio, pelos caminhos doces da fantasia indolente, das drogas, do isolamento, do trabalho excessivo, do sexo sem freios.
E, ainda que não recorramos a nenhuma dessas maneiras graves ou brandas de autodestruição, sem Jesus somos do mundo mesmo quando queremos fugir do mundo, pois de alguma forma nos vemos obrigados a recorrer ao que nos está disponível, alinhado-nos na frente que tivemos de escolher por pura inevitabilidade. No entanto, Jesus nos oferece algo que não está no mundo – ele mesmo, a transcendência imanente, verdadeira e pessoal. Com ele a saída do dilema não se dá nem por um vantajoso pacto com o mal, dissolução ou morte autoinflingida. Dá-se, sim ao nos convidar, pela sua morte, a traçarmos com ele o mesmo processo de morte e ressurreição.
Essa morte que nos sobrevém é a morte para o mal que há no mundo. A ressurreição é um renascimento em Cristo. É assim que não recusamos a existência, mas a aceitamos como quem está morto para o mundo, ao deixarmos de enxergar na não transcendência o ápice de nossos desejos. Em Jesus, morrem a concupiscência e a soberba: desaparecem tanto o idólatra que compactua com o mal, cobiçando tudo à sua volta, quanto o desiludido que a tudo desdenha, de olhos que nada mais amam.
É Jesus quem nos livra desses dois extremos ao realizar essa tremenda façanha: dar-nos meios de matar em nós o cobiçoso e transformar o soberbo do amador, o que ama “apesar”, assim como o próprio Deus nos amou. Por isso, dizemos com Paulo que, ao morrer para o mundo, não somos nós mesmos que vivemos, mas Cristo vive em nós. E, como ele é a própria vida, só nele temos a vida plena e verdadeira.
Norma Braga, em “A mente de Cristo: conversão e cosmovisão” (Ed. Vida Nova). Publicado no Boletim 132, de 08/07/2012.