9 Nesse mesmo tempo, eu vos disse: eu sozinho não poderei levar-vos. 10 O Senhor, vosso Deus, vos tem multiplicado; e eis que, já hoje, sois multidão como as estrelas dos céus. 11 O Senhor, Deus de vossos pais, vos faça mil vezes mais numerosos do que sois e vos abençoe, como vos prometeu. 12 Como suportaria eu sozinho o vosso peso, a vossa carga e a vossa contenda?
13 Tomai-vos homens sábios, inteligentes e experimentados, segundo as vossas tribos, para que os ponha por vossos cabeças. 14 Então, me respondestes e dissestes: É bom cumprir a palavra que tens falado. 15 Tomei, pois, os cabeças de vossas tribos, homens sábios e experimentados, e os fiz cabeças sobre vós, chefes de milhares, chefes de cem, chefes de cinquenta, chefes de dez e oficiais, segundo as vossas tribos.
16 Nesse mesmo tempo, ordenei a vossos juízes, dizendo: ouvi a causa entre vossos irmãos e julgai justamente entre o homem e seu irmão ou o estrangeiro que está com ele. 17 Não sereis parciais no juízo, ouvireis tanto o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a causa que vos for demasiadamente difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei. 18 Assim, naquele tempo, vos ordenei todas as coisas que havíeis de fazer. Deuteronômio 1.9-18.
Sermão do Pastor Misael Batista do Nascimento. Pregado na Igreja Presbiteriana de São José do Rio Preto, no culto da manhã, em 21/09/2025.
Introdução
Durante muitas décadas eu olhei para esta passagem de Deuteronômio e para o texto paralelo, em Êxodo 18.13-27, apenas pelo ângulo administrativo. Meu projeto final do curso de Doutorado ao Ministério foi sobre administração estratégica de igrejas. Eu tentei responder à pergunta: “um pastor deve se envolver com administração?” A conclusão, baseada em minha análise de diferentes textos da Escritura e dos símbolos de fé de Westminster foi que “sim”; na verdade, é impossível pastorear sem administrar. Exatamente por isso eu sempre olhei para este ato de Moisés, de encaminhar a escolha de líderes de Israel, como uma iniciativa de divisão do trabalho; uma espécie de versão bíblica da administração industrial proposta séculos depois por Henri Fayol. Eu não estava errado. Existe base para uma “divisão do trabalho”, olhando para Êxodo 18 e Deuteronômio 1, mas o propósito do Espírito Santo em registrar esta ação de Moisés vai além disso.
Provavelmente você já ouviu a explicação de que, nesta parte do Antigo Testamento, Deus está organizando Israel como nação. A tradução ecumênica da Bíblia, por exemplo, ao comentar a instituição destes líderes, em Êxodo 18, afirma que estamos diante da “organização da sociedade israelita”.[1] É a leitura da História das Religiões; a leitura sociológica do Pentateuco. Mesmo sem querer, nossos irmãos dispensacionalistas seguem em uma direção semelhante. Dizem eles que, no Pentateuco, Deus está configurando uma nação distinta, firmada em promessas distintas, Israel. Esta leitura não está absolutamente errada, mas o propósito do Espírito Santo em registrar esta ação de Moisés vai além disso.
Se isso é assim, afinal de contas, qual é o propósito do Espírito Santo em registrar Moisés encaminhando a escolha e nomeação de líderes para Israel? A resposta é simples. Desde o início do Pentateuco, Deus está constituindo um reino — uma teocracia — de cuidado e justiça.
Apesar da estrutura da passagem orientar duas divisões, baseadas na frase “nesse mesmo tempo” (v. 9,16), nós olharemos para o texto destacando três fatos. Em primeiro lugar, [1] Moisés não consegue cuidar do povo sozinho (v. 9-12). Para resolver este problema, [2] Moisés institui líderes-auxiliares (v. 13-15). Finalmente, [3] Moisés ordena os novos líderes a pastorear com justiça (v. 16-18).
Vamos entender isso melhor? Prestemos atenção. Em primeiro lugar…
I. Moisés não consegue cuidar do povo sozinho
9 Nesse mesmo tempo, eu vos disse: eu sozinho não poderei levar-vos. 10 O Senhor, vosso Deus, vos tem multiplicado; e eis que, já hoje, sois multidão como as estrelas dos céus. 11 O Senhor, Deus de vossos pais, vos faça mil vezes mais numerosos do que sois e vos abençoe, como vos prometeu. 12 Como suportaria eu sozinho o vosso peso, a vossa carga e a vossa contenda?
Isso fica claro, à luz dos v. 9,12, que documentam a limitação de Moisés.
9 Nesse mesmo tempo, eu vos disse: eu sozinho não poderei levar-vos. […] 12 Como suportaria eu sozinho o vosso peso, a vossa carga e a vossa contenda?
A NVI traduz as últimas palavras do v. 12 como “cargas, […] problemas, e […] disputas”. Onde proliferam pessoas aumentam cargas, problemas e disputas.
Deus designa agentes humanos para cuidar do seu povo e, conforme a Escritura, os melhores líderes são os que admitem que “não dão conta do recado” sozinhos; que são seres humanos que se esgotam. Moisés, servo de Deus nobilíssimo, distinto acima de muitos, não tem vergonha de admitir que não consegue levar Israel — uma multidão de 600 mil pessoas — “sozinho” (v. 9,12). Ele é limitado e precisa de ajuda.
Além disso, o texto nos premia com uma constatação, no v. 10: “O Senhor, vosso Deus, vos tem multiplicado; e eis que, já hoje, sois multidão como as estrelas dos céus.”
A ajuda é necessária porque Deus está cumprindo a promessa que fez a Abrão, em Gênesis 15.5: “Então, conduziu-o [a Abrão] até fora e disse: Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Será assim a tua posteridade”. A promessa está sendo cumprida. A aliança é atual. Deus está realizando seu propósito, palavra e promessa, no decorrer dos anos. E esta promessa anima Moisés a desejar o que lemos no v. 11: “O Senhor, Deus de vossos pais, vos faça mil vezes mais numerosos do que sois e vos abençoe, como vos prometeu”. Moisés suplica a Deus que a bênção da aliança prossiga e prospere.
Exatamente por conta desta prosperidade da aliança, da multiplicação do povo, Moisés admite que não consegue cuidar do povo sozinho.
Em segundo lugar…
II. Moisés institui líderes-auxiliares
13 Tomai-vos homens sábios, inteligentes e experimentados, segundo as vossas tribos, para que os ponha por vossos cabeças. 14 Então, me respondestes e dissestes: É bom cumprir a palavra que tens falado. 15 Tomei, pois, os cabeças de vossas tribos, homens sábios e experimentados, e os fiz cabeças sobre vós, chefes de milhares, chefes de cem, chefes de cinquenta, chefes de dez e oficiais, segundo as vossas tribos.
Deus está estabelecendo um reino de cuidado e justiça. Os cidadãos deste reino precisam ser pastoreados e pastorear corresponde a liderar, cuidar e organizar (cf. Sl 23).
Moisés instruiu o povo a escolher (este é o sentido do verbo traduzido na ARA como “tomai-vos”, no início do v. 13) líderes.[2] Tais líderes precisam ser qualificados, como segue: [1] eles têm de ser “sábios” (ḥā·ḵām; “habilidosos”), o que sugere “capacidade em questões práticas, aqui habilidade em assuntos civis e militares (cf. v. 15)”.[3] O termo seguinte é “inteligentes” (byn), capazes de “entender”, “ver”, “atentar para”.[4] Eles [3] devem ser “experimentados”, e aqui Moisés usa um verbo (ydʿ) que significa tanto “conhecer” quanto “ser conhecido”, ou seja, os líderes precisam “ter boa reputação”.
Os títulos que Moisés dá a estes líderes informam sobre suas atribuições amplas. Eles atuarão como “cabeças”, “chefes”, “oficiais” e “juízes” (v. 13,15,16).[5]
O v. 14 registra a concordância do povo com a proposta de Moisés e o v. 15, a efetivação das nomeações.
E é isso que temos aqui. Deus está constituindo um reino de cuidado e justiça. A fim de assegurar o cuidado dos cidadãos deste reino, Moisés institui líderes-auxiliares.
Por fim, nos v. 16-18, notemos que…
III. Moisés ordena os novos líderes a pastorear com justiça
16 Nesse mesmo tempo, ordenei a vossos juízes, dizendo: ouvi a causa entre vossos irmãos e julgai justamente entre o homem e seu irmão ou o estrangeiro que está com ele. 17 Não sereis parciais no juízo, ouvireis tanto o pequeno como o grande; não temereis a face de ninguém, porque o juízo é de Deus; porém a causa que vos for demasiadamente difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei. 18 Assim, naquele tempo, vos ordenei todas as coisas que havíeis de fazer.
Neste reino ou teocracia que Deus está instituindo, como os líderes devem lidar com o “peso”, a “carga” e a “contenda” de Israel (v. 12)? No v. 16, Moisés esclarece que os novos líderes são responsáveis por “julgar”.[6] Como lemos em uma nota da Bíblia de Genebra, o reino precisa ser provido com “um sistema judicial eficaz”.[7]O sistema judicial do reino de Deus deve ser justo, como lemos: “ouvi a causa entre vossos irmãos e julgai justamente” (v. 16). O original convoca a julgar com (ṣěʹ·ḏěq) justiça — “dar um veredito justo”.[8]
Além disso, o sistema judicial do reino de Deus deve ser acessível e disponível para todos, para o “homem e seu irmão ou o estrangeiro que está com ele” (v. 16).
E esse sistema judicial do reino de Deus deve ser imparcial: “Não sereis parciais no juízo, ouvireis tanto o pequeno como o grande” (v. 17a). Os juízes devem julgar sem ter medo dos homens: “não temereis a face de ninguém” (v. 17b). E a base para esta prática de justiça, além de jurídica, é teológica,[9] como segue: “porque o juízo é de Deus” (v. 17c). Trata-se de justiça perante Deus (coram Deo); consistente com Deus.
O reino de Deus provê cuidado e justiça. Desde o mais humilde cidadão do reino deve ter acesso aos tribunais, sabendo que sua causa será tratada com equidade e imparcialidade. Um ponto destacado em Deuteronômio é que, Deus se importa com a prática da justiça horizontal — com o modo como tratamos uns aos outros e resolvemos os problemas uns com os outros. Não é sem razão que, no Sermão do Monte, depois de proferir as bem-aventuranças e dizer “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos” (cf. Mt 5.6), Jesus insiste que o reino de Deus é de justiça (Mt 5.17-48). Aliás, de acordo com Jesus, a justiça de seus discípulos deve exceder a dos religiosos de seu tempo, como lemos em Mateus 5.20: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.”[10]
Moisés orienta ainda: “porém a causa que vos for demasiadamente difícil fareis vir a mim, e eu a ouvirei” (v. 17). Não se trata aqui de mera divisão do trabalho e sim de mediação da aliança.
Se chegassem a um impasse, segundo Moisés, poderiam apelar a ele para obter decisões em casos difíceis. O papel exclusivo de Moisés como mediador profético entre Deus e o povo o qualificava para traduzir as preocupações do povo para Deus e entregar ao povo as decisões de Deus (cf. Nm 12.6-8).[11]
Finalizando o relato, Moisés declara, no v. 18: “Assim, naquele tempo, vos ordenei todas as coisas que havíeis de fazer”. Moisés ordena os novos líderes a pastorear com justiça.
A partir daqui, comecemos a concluir.
Conclusão
Em Deuteronômio 1.9-18 [1] Moisés não consegue cuidar do povo sozinho. Por esta razão, ele [2] institui líderes-auxiliares e, em seguida, [3] ordena a estes que pastoreiem com justiça.
[1] Nunca nos esqueçamos do óbvio. Líderes são seres humanos. Nós vivemos na era dos superapóstolos plenipotentes. Homens e mulheres supercrentes que insistem em nos fazer crer que eles bastam. Que eles fazem e acontecem. Mas não. Eles não são prenipotentes; eles não são supercrentes; eles não bastam. Não dão conta nem do início do recado, quanto mais do final. Eis o que Deus nos diz, em Isaías 40.6-8:
6 Uma voz diz: Clama; e alguém pergunta: Que hei de clamar? Toda a carne é erva, e toda a sua glória, como a flor da erva; 7 seca-se a erva, e caem as flores, soprando nelas o hálito do Senhor. Na verdade, o povo é erva; 8 seca-se a erva, e cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente.
Não apenas os líderes, mas todos nós somos como planta que murcha rápido. Todos nós somos apenas seres humanos. O que permanece para sempre é a Palavra de Deus.
Isso deveria instilar em nós, verdadeira dependência e contrição, como em Asafe, em Salmos 79.9: “Assiste-nos, ó Deus e Salvador nosso, pela glória do teu nome; livra-nos e perdoa-nos os pecados, por amor do teu nome”. E isso deveria conduzir nossa admiração e devoção, acima de tudo, para Deus e sua Palavra. Vamos pedir isso a ele hoje? “Oh, Senhor, orienta meu coração para admitir minhas fragilidades, para reconhecer a fragilidade humana em geral, e para crer mais no Senhor; depender mais do Senhor; me devotar exclusivamente ao Senhor!”
Quem admite que é frágil é mais propenso a pedir ajuda e a praticar autocuidado. Nós não damos conta de carregar determinados fardos. Nós precisamos de humildade e sabedoria para reorganizar a vida — as práticas, a agenda — a fim de recuar e alterar a programação. Ajustar ritmos. Inserir pausas. Respirar. Não trazer para nós todas as responsabilidades. Moisés não dava conta disso. Nós também não. Vamos pedir isso a nosso Deus? Que ele alivie nosso estresse? Pacifique nossas emoções? Nos dê sono e nos ensine a respirar?
[2] Depois de admitir nossa humanidade e, por conseguinte, fragilidade, temos de abraçar nossa responsabilidade. Pois Moisés, vendo-se limitado, agiu para solucionar um problema prático, de providenciar cuidado e justiça para os cidadãos do reino de Deus. E os líderes eleitos assumiram seus papéis naquela teocracia.
Hoje temos de viver como cidadãos deste reino de cuidado e justiça. Ajudar uns aos outros. Praticar a justiça do reino. Tratar corretamente a todos — os irmãos próximos e os de fora. Defender quem não tem voz. Julgar sem favoritismo. Especialmente neste Domingo Missionário, Deuteronômio nos ajuda a entender que Deus está instalando um reino de cuidado e justiça — e nós somos agentes de sua aliança neste reino, de modo que podemos fazer nossas as palavras do cântico que aprendemos hoje:
Por onde for, serei tuas mãos
Aqui ou onde me enviar
Me entrego, podes me usar
Por onde for, seja expressão do teu amor
Ao redor do mundo
ou do outro lado dessa rua
Falarei do teu amor.[12]
Vamos orar sobre isso.
Notas
[1] BÍBLIA TEB: notas integrais tradução ecumênica. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2020, p. 120 (Coleção de livros da literatura Judaica e Cristã).
[2] O verbo é yhb; “dê! venha!”; “escolher”; daí as traduções da NAA e NVI: “escolham.”
[3] MERRILL, Eugene H. Deuteronômio. São Paulo: Vida Nova, 2025, p. 55 (Comentário exegético).
[4] Com as duas primeiras palavras, Moisés está dizendo que os líderes escolhidos pelo povo devem ser “muito sábios”. De acordo com MERRILL, op. cit., loc. cit., a justaposição dessas palavras pode ser traduzida aqui “por uma hendíadis, ‘muito sábio’ ou algo semelhante”. De fato, byn não reaparece na repetição das qualificações, no v. 15.
[5] No texto encontramos rō(ʾ)š; “cabeça”; “topo”; “chefe”; daí, na TEB, NVI e NAA: “chefes”; e na NVT: “eu os designarei para serem seus líderes”. No v. 15, “chefes” traduz śǎr; “líder” e “oficiais” traduz šô·ṭēr; “governante” ou “conselheiro”; a TEB traduz como “escribas.”
[6] O hebraico traz um verbo e não um substantivo, špṭ; [designados para] “julgar.”
[7] BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. 3ª ed. [BEG3]. São Paulo: Barueri: Cultura Cristã; Sociedade Bíblica do Brasil, 2023, p. 299.
[8] MERRILL, op. cit., p. 56.
[9] Ibid., p. 57.
[10] O termo grego traduzido como “justiça”, em Mateus 5.20, dikaiosynē, atualiza o conceito de justiça do hebraico ṣěʹ·ḏěq.
[11] MERRILL, op. cit., p. 57.
[12] NOVO CANTO. “A rua e o mundo”. Disponível em: <https://open.spotify.com/intl-pt/track/6E1VAAunfbge39hRqwyTzm?si=dd09b07e58f84a6a>. Acesso em: 21 set. 2025.
Recursos adicionais
Arquivos em PDF
Slides do sermão em PDF